Em tempos de Quarentena

Em tempos de Quarentena

18/04/2020
Em tempos de Quarentena

“Preencher os Níveis de Desenvolvimento Funcionais (NDFs) são o alicerce de apoio ao vôo rumo a autonomia (Goergen, 2020)

 

QUE TAL FALARMOS SOBRE ZONA DE CONFORTO? OS TERAPEUTAS ESTÃO NESSA? COMO ESTÁ A DINÂMICA FAMILIAR?

Recebi uma belíssima ilustração de um paciente: com a seguinte dedicatória:

 

By pais

“A paternidade e maternidade sempre são um imaginário feliz. Ao planejarmos ter um filho o idealizamos como perfeito, lindo, cheio de qualidades e ele vem assim mesmo, para nossa graça, porém muitas vezes não conseguimos mais ver essa “perfeição” quando aparecem os primeiros desafios e por vezes são até mais sérios. O que nos fortalece é a caminhada autêntica, estarmos dispostos a enfrentar tudo o que “aparecer”, na alegria e na tristeza, pois isso nos fará responsáveis com o nosso filho.

Assim foi também o nosso começo como pais do Mathias, idealizações, desejos. Quando ele tinha 7 anos conhecemos a Drª Maria Sônia, no primeiro encontro uma avaliação detalhada dele, anamnese da gestação, primeiros meses, anos, os como-o que faziam, agia...

Ela muito atenta, profissional, nos fez investigar mais (avaliação neuropsicológica, exames mais detalhados –tractografia-exame belíssimo e pontual) e muito perspicaz, não apresentou nenhum diagnóstico sem antes ter a certeza. Alertounos para não “consultarmos” com o dr Google, pois em diagnóstico confirmado seriamos devidamente orientados quanto as leituras importantes.

Alguns meses depois, de uma forma muito suave e profissional fomos informados da confirmação de que nosso filho Mathias estava dentro do Transtorno do Espectro Autista. Inicialmente um sentimento estranho, mas novo. Após apareceram os questionamentos (os porquês e para que) o luto e a decisão de encararmos o desafio com esperança. Foram leituras, participações em palestras, troca de informações, busca de profissionais para dar o suporte nas demandas que surgiam.

Não paramos e não o deixamos parar, sempre certos de que todos os profissionais que estavam nos auxiliando não seriam suficientes se nós como pais não assumíssemos a nossa maior responsabilidade, de sermos Pai e Mãe do garoto. Ninguém poderia ocupar nossa função e essa postura sempre foi essencial para o Mathias. Hoje pré-adolescente, numa fase de muitas mudanças, podemos dizer que ele vem evoluindo. Sabemos que teremos muitas lágrimas e alegrias ainda, no entanto permanece a fé e a certeza de que somos as melhores referências para ele. Esperamos estar auxiliando na construção de um ser humano único e cheio de riquezas para contribuir com esse mundo.”

A partir disso, outros pais com relatos diversos foram surgindo, outras situações foram sendo relatadas/enviadas. Achei associativo para iniciar esse “bloco” para o que precisamos fazer nesse período de rearranjos. E conclui que precisamos iniciar discutindo o que ocorre quando precisamos sair da nossa zona de conforto!

Solicitei aos supervisores e consultores do Neuroplaybrasil que abarcassem alguns aspectos da temática quarentena e seus percalços/tropeços, convidando alguns pais a ilustrarem conosco como estão administrando esse momento.

Fica aberto para novos ”brainstormings” a serem feitos ate que haja apenas o suficiente de “instabilidade” para voltarmos a produzir sem a ameaça do covid-19.

Vamos ver se conseguirei motivá-los a interagirem comigo trazendo comentários e enriquecimentos à temática. Entrarei em zona de instabilidade, esperando prosseguir para a zona de organização!!!!

E para isso inicio provocativamente, com uma denominação que usamos muito – zona de conforto – frequentemente, remetida de forma reducionista ao autismo.

Mas o que é zona de conforto? - De forma simples (lembro aqui que isto é uma escrita de BLOG), pense em ZONA DE CONFORTO como, o estado mental, onde ficamos, sem tensão, sem pressão, fazendo o que se conhece, e em principio, ficamos envolvidos com o que gostamos de fazer, ensimesmados ou não!

E, o que acontece, se ficamos por demais presos nesse estado mental? Aqui sim temos os transtornos. Me causa, todavia, “goosebumps”(arrepios), quando leio superficialidades de uma temática tão complexa quanto essa. A começar que nenhum profissional da área do neuro-desenvolvimento deveria se atrever a ser reducionista pois isso de imediato fecha as portas da comunicação para entendermos o nosso paciente.

Mas, e o que acontece quando somos remetidos para fora dessa zona de conforto? Aqui temos os funcionamentos não necessariamente patológicos, mas que estão no limite com a zona de organização. Aqui entra a quarentena. Numa fase inicial a quarentena está na zona do caos, mas também estará na zona de 5 organização, e de instabilidade, a medida que protocolos como o ilustrado pelo Mathias começam a ser definidos. Vejam que a Z. de organização fica entre a Z. dos rituais e da Z. de instabilidade, e a quarentena precisa de protocolos para podermos sair dela.... lembrando que iniciou na zona do caos....

Vejam também que protocolos na quarentena são a organização que precisamos para podermos NÃO NOS ENSIMESMAR, e principalmente poder operacionalizar num novo patamar.... pois que....mas e agora? NÃO PODER ABRAÇAR!? USAR MÁSCARA? USAR LUVAS? Estao percebendo que protocolos ajudam a organizar e nos tirar do caos? Recursos sensoriais já introjetados em nossa historia estão sendo limitados, modificados no que usamos no aporte sensorial para fazer planejamentos e sequenciamento motor? Como modular os novos aportes sensoriais sem o referencial que já havíamos internalizado? Pois então, definitivamente, todos saindo da sua zona de conforto, dos seus rituais diários para poder tolerar “uma certa instabilidade” para produzir! E a flexibilidade será necessária pois se tivermos rigidez de rituais (ex. TOC/ TEA) vamos ter dificuldades de modular e flexibilizar nossa rede neural e ficaremos em perseveração sem produção! Utilizei uma ilustração (que aprendi da Física para criar a imagem que preciso para que vocês queiram me acompanhar no raciocínio; não tenho a intenção de conduzi-los a uma aula de física, muito menos de neurodesenvolvimento assim que me perdoem os acadêmicos acostumados ao ”onde isso está escrito?” pois estou a escrever por livre associação das leituras de escritos consilientes (Edward Wilson) à temática e situações clinicas de um sistema adaptativo complexo (para quem quiser adentrar vejam os trabalhos do grupo Santa Fé (Complex Adaptive System) , onde o cérebro tem muito do seu entendimento funcional).

Rituais Repetições/ condutas Obsessivas Organização instabilidade caos Morte
Doença Ex: TOC/TEA Integração/produção

quarentena quando organizada com protocolos
Produção / Aprendizado p/+ ou p/ - overloading/Não integração

quarentena fase inicial
desintegração

Mas então, o que foi que aconteceu conosco nessa quarentena? Observem que para o aprendizado ocorrer e a produção emergir precisamos de uma certa instabilidade do sistema neural. Ficamos oscilando entre instabilidade e organização e utilizamos com frequência protocolos que estão dentro dos rituais (no extremo à esquerda do perfil de zonas) onde também temos níveis de intensidade, que podem auxiliar na organização, bem como nos estagnar, e termos formações patológicas, que costumo comparar com “relé grudado” que numa linguagem neurológica se denomina ”perseveração” do sistema neural. E aqui estamos nos rituais/nas repetições que como mencionei acima precisamos em nível baixo de penetrância para funcionarmos em certa organização; há necessidade de uma certa instabilidade, pois que somente assim ocorrerá aprendizado e que quando temos estagnação em zonas de conforto sem adentrar nessa zona de instabilidade temos as zonas de conforto do TEA.

Então, e assim chego no diagrama feito pelo Mathias. Vejam que dessa forma estou ilustrando a organização que Mathias fez dentro da quarentena. A mãe e o pai certamente foram norteadores assim como a escola, e juntos os agentes terapêuticos dele, mas, aqui esta o brilhante do Mathias, ele identifica que há fatores que o colocam na zona do caos onde ele fica com sobrecarga (overloading) e pode deixa-lo com condutas que ele sabe não serem as apropriadas, sem interação adequada, e o remetem ao sofrimento. Mathias tem neurodesenvolvimento que eu denomino, no estagio neuroevolutivo dele, de “ser capaz de pensar seus próprios pensamentos” pois há cognição e afeto integrados para “sentir-se um ser pensante”. Mas ele é um adolescente que “precisa crescer reescrevendo sua própria história” como todo adolescente precisa fazer. Re organização do sistema hierárquico cortical, integrado, com flexibilidade, para tolerar uma certa instabilidade, exige o PENSAR e nesse contexto em que ele se encontra sou para ele um referencial de tranquilização, pois faço parte do seu universo assim como os responsáveis pelo seu aprendizado, e seus pais, como ancoradouro para alavancar-se no nível de livre arbítrio e tomadas de decisões. Mathias tem um funcionamento neuronal bem propício para ilustrar a neurodiversidade que tanto está propalada na mídia das intersecções diagnosticas dos transtornos neuro-desenvolvimentais. Mathias tem, assim como seus pais, o desejo de ser entendido, aceito, mas acima de tudo de entender e crescer a partir da organização de sua rede neural. O cuidado que temos com ele é muito simples: rótulos precipitados reducionistas, de generalização, o limitariam em sua potencialidade, todavia, saber seu espectro e alcance o deixam mostrar-nos que certos protocolos podem ser calmantes!.... e não apenas para sua neuro-diversidade, mas para todos que precisaram sair de suas rotinas .... By Maria Sonia Goergen, MD, neuropediatra, coordenadora do Neuroplaybrasil. (p quem conhece o P.L.A.Y. 8 Project, seguimos a ideia do Mathias (follow his lead) e a dica aqui foi a autoria usando o “by”)